O pic-nic de família

De manhã cedo já se ouvia a buzina do carro do Xico.

- Ó Manel, anda lá! Assim chegamos tarde. Grita o Xico, enquanto sai do carro para tocar à campainha.

Lá em cima, naquele 3º andar, estava tudo em alvoroço. Sacos e mais sacos, as crianças a perguntar, insistentemente, se podiam levar este e mais aquele brinquedo.

O Manel e a Josefa já nem sabiam para que lado se virar. Iam respondendo afirmativamente aos filhos para conseguirem ouvir os seus próprios pensamentos e evitar esquecer-se de alguma coisa.

Todos os anos, por aquela altura, as duas famílias juntavam-se naquele almoço fora.
Cada um levava alguns víveres, tudo distribuído irmamente, para não sobrecarregar ninguém, que as finanças estão apertadas.

Xico continuava lá em baixo, encostado ao carro, à espera dos amigos.
Aproveita aquele momento para dar um jeito às unhas. Tira as chaves da ignição e ajeita o corta-unhas.
A operação foi rápida. As chaves regressam à ignição. Meia volta para a música voltar a ecoar, estridente, pelas colunas do carro.

De imediato, os sons voltaram a baralhar-se. O mega êxito gritava ligeiramente mais baixo que os dois filhos do Xico, sentados no banco de trás, a degladiarem-se por causa de um porta-chaves de pendurar ao pescoço, oferecido na bomba de gasolina, a caminho dali.

Finalmente Manel aparece à porta do prédio. A festa dos cumprimentos foi efusiva.

Manel abriu a sua Toyota Hiace e encheu-a com as espreguiçadeiras, as marmitas, o garrafão de vinho, os dois filhos e a mulher.

Ligou a carrinha e partiram, para o pinhal do costume.

A rua voltou a dormir.

- Ó Xico, abre aí o vinho, enquanto acendo o carvão, pede Manel.

- Ó Josefa, descobre aí o saca-rolhas, pede o Xico.

- Ainda não está? Queres ver que não o puseste no saco? Eu bem te avisei para o ires buscar.

- Mas eu fui buscá-lo, só que não sei em que saco o enfiei, explica Josefa.


As buscas continuam. Xico aproxima-se de Manel, enquanto este ateava o lume.

- O raio das mulheres, é sempre a mesma coisa. Estão em casa o dia todo e não fazem nada. Nós é que trabalhamos e ainda temos que nos lembrar de tudo, desabafa Xico.

- É verdade, acrescenta Manel, ainda ontem molhei a colher da sopa na minha Maria. Vê lá que fez a porcaria da feijoada com pouco sal. É pá, isto estraga logo o almoço a um gajo. O que me safou foi o vinho. É que grande pinga, aquele vinho do Quim.


Pouco tempo depois estava o almoço feito. Um verdadeiro manjar: sardinhas, febras, salada, batatas cozidas, vinho, muito e sumos, para os mais novos.

As conversas baralham-se. Xico e Manel falam entre si. Sobre questões de trabalho, futebol e outros "assuntos de homem". Josefa e Maria, mais ao fundo, lamentam-se, em surdina, das suas vidas. Os filhos, o trabalho de casa, o preço das coisas, o problema da vizinha do 4º esquerdo, com o marido bêbedo....

Cruzes, canhoto, repetem para si, ter uma vida daquelas, enquanto valorizam a felicidade de terem uns maridos que, apesar de tudo, não lhes dão tareias monumentais.

Lá ao fundo, as crianças já jogam à bola. Rapazes e raparigas. Todos juntos. Como que o prenúncio de uma nova atitude, deixando para trás a segregação feitas pelos pais.

Josefa e Maria entornam água dos garrafões para os alguidares para lavarem a loiça.


Nesta altura já Xico e Manel ressonam, nas espreguiçadeiras, enquanto o rádio vai fazendo a contagem decrescente para o início dos jogos da tarde.

- Toca a andar, que já só falta uma hora para começar a bola, apressa Xico.

O recolher obrigatório foi obedecido e, em menos de 10 minutos, estavam todos de volta aos carros.

- ó pai, deixámos o lixo todo espalhado no chão....
- Não faz mal. O vento depois trata disso, explica Xico ao seu filho mais velho.
- Mas lá na escola, a professora disse....
- Cala-te, agora, deixa ouvir a música.


.................

"E o que não vi só tive de imaginar (...)", já dizia a música.
Este é o efeito do cheiro a sardinhas num pensamento que não pára!